Entre o sol e a lua - o insofismável dualismo

Caiu tanto sol na terra
caiu tanto fogo no mar
que este se evaporou
e aquela se rasgou.
E os rios ficaram córregos
e os córregos ficaram canadas de saudade
e as rias fugiram da praia
e os navegantes cultivaram o campo
procurando a cópia do mar
que tinha desertado o vale.

Depois o sol desmaiou
e foi a vez da lua aparecer
matreira e gordinha
compassiva e chorona.

Gemeu tanto
que encheu o céu com um cueiro de novidades aflitas
que caíram nas raízes secas
que acordaram as folhas mortas
que pingaram na terra morna.

E as gretas da terra se fecharam
os rios de novo cantaram
e o mar de novo cresceu.

Fernando Oliveira

O presente é dia de descanso

O passado não pode ser descurado
Não para nele viver - é passado
Mas para procurar as linhas do futuro
E tecer cordas que nos façam galgar o muro.

As dívidas são todas do passado
Os lucros são todos do futuro.

Fernando Oliveira

Tela que ainda não pintei

Todas as rosas não eram mais rosas que a tua face
Todos os lírios não eram mais amenos que a tua íris
Todas as árvores não eram mais garbosas que as tuas pernas
E as montanhas asseadas não igualavam os teu seios.

Nunca te penteaste
Deixavas que o mar o fizesse
Nem te lavavas
Deixavas que o rio te afogasse
Num rito acróstico que a corrente ameigava
Dos cabelos flor-de-viúva
Até às unhas dos pés.

Todos os adjectivos pintavam o teu retrato
E os seixos que cursavam o teu rumo
Contavam o macio de passos descalços
Aquele andar entre o perro e a andorinha
Na mata onde ninguém descansa.

Descansaste na rama cheia de pinha
Eras pomba mansa e fêmea brava
Agora nem sequer és semente.

Disse-te um dia que não morresses
Antes de chegares à foz
Tão perto estavas da nascente
Tão bem estavas entre nós.

E agora teimosa e insolente criatura
Mudo esqueleto num campo com cintura
Todos te choram e eu não choro
Já disse adeus a muita gente
Mas a ti nunca direi.

Fernando Oliveira

Entre as fraldas e o sudário

É agora que o grito soa
que a imagem para a saudade voa.

Correm lágrimas do berço para o cemitério
cessou o mistério.

Era antes um ser alguém
um rico déspota um Zé ninguém.

Uma pomba branca um chasco azougado
um mestiço fragoso que agora deitado.

Moureja a terra sem ar e sem luz
germina o esqueleto que não mais seduz.

E o grito maltratado que agora morna
jaz na saudade a única forma.

De abafar o mio da caducidade
o homem não faz falta à cidade.

Relatam os sábios que ele é pinga
como a chuva que cessa e respinga.

Fernando Oliveira

A vós me confesso

Vós ais que me arrasais
no ouvido que já não tenho
porque já sou lenho
não glosais.

Venho de outros climas
de caretas de Carnavais
onde risos eram frimas
e os sítios arraiais.

Nesse tempo era audaz
como a água do regato
diziam que bom rapaz
no gesto e bom retrato

E nunca falhava um facto
ribeirinho com sinais
no templo bisava o acto
no campo moldava ais.

Fernando Oliveira

Depois mais nada

Morto nos beiços que não são lábios
era um beijo frio como o sargaço
longínquo como o erro dos sábios
circunspecto como a queima do aço.

Era um convir acoito que o véu obriga
pedaço de nada com resto de haveres
abraço tão lasso que a mão castiga
corpos divisos na folha de deveres.

Era haja que não havia no momento
engenho esquecido no matagal da sorte
conjuntura deposta na soma do tempo
selo de carinho com vestígio de morte.

Morto nos olhos que ninguém visita
o resigno duma alma e mais uma
duas sem uma e nenhuma que grita
um beijo de dor que suprime a suma.

Fernando Oliveira

Nas trevas o voo é contingente

É tarde...

As luzes já dormem e o incauto
no fundo do bosque
desorientado e vencido
murcha no ar.

As ervas assobiam o nome
que dele voa como o vento do baptismo.

Enquanto as luzes continuam mortas
nutre-se da escuridão
dum paredão de barro
que o encerra
o curva
e o colhe
como um floreio
desterrado
no poço dum sol extinto.

Talvez não...

A aflição chegou ao âmago das flores silvestres
aflitas do soo da loucura.
Nos últimos instantes da negrura
reúnem-se na rossio da aurora.

Chorando todo o bálsamo no corpo gasto
lágrimas florentinas e alvorada
que fazem renascer o abelhão.

Fernando Oliveira

A caneta não é minha é tua

Na escrita muita gente estrebucha
Alguns suam para subir a ladeira
E meia dúzia se instala no cume

Alguns utilizam uma doce chucha
Outros trabalham por brincadeira
E os demais adormecem no ciúme

Entre a estrebucharia e a falcatrua
Existem dois dedos de rivalidade
Aqueles que folheiam o chumaço

De obras doutros que queriam sua
Expostas nas livrarias da cidade
Esbatidas na luz morta de cansaço

Se a escrita corre antes que se desfaça
Entre o estrebucho e a ensoberbeceria
Levanta-te e anda escreve com raça

É na dificuldade que a letra engraça
Na pluma do doutor ou da tia Maria
Se houver lume haverá sempre fumaça.

Fernando Oliveira

Só a mão nutre a vida

Dizem que é a mão que tem pena
pois é adornada de cútis perita.
Que a energia é apenas a cena
dum volume que cala ou grita.

E que quando o coração desmaia
a mão apalpa para segurar a guita.
Da novela para que não caia
no poço da inteligência aflita.

Dizem que é mão que fecha a brochura
quando o pulmão não mais lê o ar.
Que agarra o pulso e diz com secura
é tempo de ir sossegar.

Dizem que o cérebro nada tem a pensar
ele só concebe porque a mão manobra.
E se esta não tem mais trecho a folhear
fecha o cartório onde acaba a obra.

Que pena reina na nossa mão
que afaga o peito e o cesto da memória.
Pedindo aos dois a concessão
de morrer logo que acabe a estória.

Fernando Oliveira

A maldita Barca de Caronte


Quando o homem navega com os olhos classificados
E abandona a fonte para arrumar a norma do patriotismo
Quando ele exerce a razão do conjunto e morre sozinho
A morte é só dele. Os outros que se cuidem e defendam
Haverá sempre uma intriga na estrada por mais lisa que seja.

Uma ira do caos que lhes entra no tímpano até mais não ouvirem.

Era aquela barquinha velha com panos gentis de genealogia
Que flutuava em riachos de água instintiva com sotaques de rã
Na aldeia fresca e severa com arraiais de frialdade no caminho
Na urbe recenseada com vestígios mas nenhum de armistício.

O jovem amava-se como um Eneias de virgem heroicidade.

No exílio de frente calorenta além tão além que a vida se caduca
Num cálice de liquido vermelho servido como última imagem
Cessam os brados de valentia e no passaporte aparece o nome antigo
Finou-se a juventude antes do colossal abraço de antologia.

Oh barqueiro incorrecto monetário e traiçoeiro. Oh pátria sem luz
Que rio me deste. Tanta alegria tinha no meu fóssil córrego
Oh guia maldito que velejas a minha última dor até á foz do inferno
Rio de desventura que te fez eu para me subtraíres o espírito.

Viajarei contigo asqueroso Caronte. Deixa-me saudar os amigos
Levas-me para o infortúnio nestas águas infaustas e bárbaras
Não vejo mais margens barqueiro nem folhas mortas do Outono
Não tenho rumo mas ainda sinto o cheiro do pranto do Vesúvio
Depõe-me nos seus pés e te trai Sibila te dará o ramo de ouro.

Caronte ouvia os protestos do mancebo com roupa de cruzada
De beiços tão graves e boca tão gentil como a neve do Olimpo
Perdeu a vigilância e derivou até encalhar numa ilha inocente
E nunca mais voltou a transportar indefinidos mortos ilegítimos
Segundo a lenda ainda vive resgatando vitimas de guerras ilegais.

Fernando Oliveira

Tela do pintor Júlio Santos, realizada para o poema.

Quando as musas me dão a mão

As musas eu as colho num campo tão vasto
Que a minha ideia não tem juízo da dimensão
É a graça que orna o penteado duma donzela
Um peito tão belo que nem precisa de coração
Um rosto cândido por detrás duma tímida janela
Ou uma criança foliando com o gado no pasto.

E se a amável Herato desenha uma bela cena
Com a pequena lira onde Caliope capta a voz
Não escondo que me inspiro da luz que chiava
Nas vielas que admitiam o canto dos meus avós
Clio com o pulmão aberto soprava e declamava
E a cidade era tão bêbeda provocante e morena

Que Terpsícore com a sua dança estonteante
Rodopiando até ao cais da volúpia – Euterpe
Flauteando comovida com a minha erudição
Melpomene descendo comigo vestida de crepe
Até ao rio onde todas as musas me davam a mão
Tália germinava flores Polímnia era cantante.

Urânia levou-me para a excelsa inspiração.

Fernando Oliveira

Conjunções


A mão é um indiviso excelso
conveniente
e talvez ingénuo
que manipula até o fim dos dedos
as cores da manifestação
na primeira ocorrência do parto.

Um tempo extraído do intuito abortado
nos riscos dum arquitecto.
no planalto do esquema.

O tecelão
espreme o ovo-sol que vai pigmentar a água fóssil
dando-lhe o rubor do brio
e a acção do caldo forte.

Os equídeos perplexos esperam o primeiro baptismo
com a serenidade do cepticismo

O estrelado sol-ovo que goteja apenas a intenção
do peito da mão - mão-peito
até ao primeiro serão.

E a água que se evapora
para alcançar a palma-mão
antes do segredo da égua.

O primeiro
relincho da conjunção.

Fernando Oliveira

Tela de Júlio Santos ( Portugal )

Árvore de quatro estações

Em pleno convénio com a primavera
se os galhos se enchem de folhas viçosas
a árvore germina flores de quimera
e a raiz colhe no musgo águas ditosas.

No fim do verão a árvore estremece
e o vento outonal que a faz mexer
acaricia a folha idosa que já não tece
a essência da seiva que a fez viver.

Enquanto a folha tosca amarelece
e se prepara para voar e falecer
o fruto adulto exulta e amadurece
doando ao pássaro a semente do prazer.

No Inverno silvestre o solo fabrica
o preparo para nova e desejada era
enquanto a árvore nua pousa e fica
lendo o pacto da próxima primavera.

Fernando Oliveira

O espelho da flor

Se existisse uma só - e única flor
que fosse cor-de-rosa ou bem-me-quer.
Vivesse unicamente - para dar amor
como a margarida feita mulher.

Entre o germinar e a copiosa vida.

Se fosse apetecida pela sua cor
do brotar do sol - até à meia-luz.
No murchar argênteo - até ao rubor
aromatizando a meiguice que produz.

A língua gorda como o ego da orquídea.

Se fosse a única flor que o sol redobra
no piso árido - duma missa solitária.
Choraria apenas pela água que não sobra
e que não a leva à suma pia candelária.

Onde casaria com a própria foz florida.

Fernando Oliveira

Eu e eu!...

Hoje saudei-me e abracei-me
duma maneira quase narcísica.
Falei-me e escutei-me
duma maneira quase feliz.

Depois despedi-me de mim
prometendo-me que voltaria.
Ou se não me revisse
me escreveria.

Fernando Oliveira

Toma lá e dá cá.

No lugar duma gota
te darei uma fonte.
E se for pouco
te darei um rio.

No lugar da brisa
te darei a causa.
E se for pouco
te darei o rebuliço.

No lugar da faúlha
te darei o aviso de fogo.
E se for pouco
te darei o vulcão.

De ti!...

Só peço a água que sobra da tua sede.
O sopro da tua respiração.
E uns lábios agitados faiscando paixão.

Fernando Oliveira

Inferência ao equívoco

Viste esposa, a saia que aquela tem
A blusa que sustenta - com alça
O porte que mais parece uma dança
Anda p’ra mim e p’ra mais ninguém!

Viste a touca que lhe cobre os cabelos
O sustentáculo dos seus peitos brancos
A arquitectura dos seus ombros francos
Que bamboleiem como barcos rabelos.

Viste nos dedos, a marca da saudade
Um anel de linho que rompe dia-a-dia
Uma antologia dissolvida sem piedade.

Proferes que viste, porque te referia
E eu tampouco descrevo a verdade
A mulher que mostro, é só todavia.

Fernando Oliveira

As veias do destino

Foste tu,
que te afogaste na água amável?
Ou eu,
já submerso que te chamei?

Tu vieste; e eu estremeci.
Depois
nada mais soube.

Talvez ainda vivas no meu espelho,
talvez não tenha morrido
dentro do teu.

Naquela acção análoga e induzida.
Uma mão que puxa
uma mão que pede.

Borboletas de asas azuis circunscritas
olham agora o mesmo céu.

Fernando Oliveira

E da pedra!...

“Não há mãe mais prolífica
do que a pedra.
Não há pai mais generoso
do que o mar. “

A areia é filha de ambos
e pertence ao reino - Areal.

O areeiro - é o povo mais unido da terra
porque não tem pátria
hino
nem bandeira.

Não tem pontas nem miolo.

É um povo hermafrodita
que respeita o pai e a mãe
de tal maneira
que de filhos!...

Não tem filhos.

Mas elege todos os filhos que saíram do mar
e da pedra.

Fernando Oliveira

O peso da gravidade

Apalpei a terra em todos os recantos
E ela era dura.
Deslizei em mares e rios
E eles eram duros.
Olhei para um espelho
E ele era oco.
Por detrás de mim
Camponeses moldavam a terra
Pescadores colhiam nas águas.
Uma borboleta pousou nos meus ombros
E ela era leve.

Fernando Oliveira

Noite estúpida

(9 de Novembro de 1938)

Eram tempos de vidros frágeis
e de pedras fortes.

O vento soprava em todas as direcções.
Não era um agora robusto.

A ideia pode ter brotado duma primavera
desfalcada na raiz
duma árvore entontecida no capricho de ventos passados.

Ventos que invadiram o arpoador de vidro dos judeus.

As cornetas tinham mudado de direcção
e os algozes crescidos em ramalhetes indistintos
jogavam xadrez com cavalos de cristal
e venciam os reis de areia.

Naquele hoje de espelhos artísticos
e chapéus mais altos que o cume de referência.

Fascistas e republicanos prendiam fulgores nos palácios dos vizinhos.
Ninguém sabia qual raça exterminar.

E Deus do alto da sua alegórica democracia.

Não sabia aplaudir
nem assobiar.

Fernando Oliveira

A sensualidade da noite

A ebriedade da noite escalda o peito
no fim do dia impúdico.

Flutua no ar entusiástico um inferno cobiçoso
vindo directo da caldeira do astro-rei
A silhueta esgueira-se felina por entre as cortinas de cetim
soprando unguento de jasmim.

O tempo evapora-se no porquê
da dança ebúrnea e febre
da sombra com pele de musselina.

E assim nasce o propósito.

Os peitos crescem até ao cio
para amamentar as estrelas
antes de caírem
no estuário do quebranto.

Fernando Oliveira

Saudade

Os filamentos da saudade atravessam os tempos
os espaços e as muralhas das convenções sociais.
São bússolas gravadas num dó em contratempos
enrolados na tirania de quietos novelos anais.

São tripas que agitam o pensamento que acorda
a nostalgia morta de entre o urdo dos destroços.
A traslação das imagens que dum eu transborda
até à latitude de então que abre brios e remorsos.

É a música de outrora que por um tempo regurgita
através das dimensões dum destino arquitectado
nas orlas mais profundas dum juízo que se agita.

E se desprende na leitura intercalar da fita
enevoando a representação do existente fado
com dó ou com agrado a trama remota grita.

Fernando Oliveira

Águas esquivas

Sempre tive um mar ao lado; e não o via
uma foz d’água verde que me banhava.
Nunca achei no litoral que m’apresava
o mergulho do oceano que não queria

Equivoquei o leme da minha intuição
brincando com a água como se fora um lago.
Amei na areia, algum peitilho amargo
extinto nas fragas dum bravo paredão

E o mar que não via, crescia, anoitecia,
amanhecia sempre, depois de morrer.
Então que eu, ainda eu: nada percebia

Nada ocorria, tudo era saldo e morria
em mim, no lago; e no falso querer.
Na água verde que era mar; e eu não sabia.

Fernando Oliveira

Metáfora

Eu sou Deus
a pátria e o montão
o pão e a faca.

Eu sou a gema...
a síntese do universo.

Sem mim!
não há cadafalsos
e a natureza chora no vazio.

Eu sou a loucura do barão.

Aquele apólogo
que se ideia pássaro
duma vida aquilina
e sufoca no aprumo da evolução.

Eu sou. Por mais não poder ser!.
O impulso.
A ideia da água que se estende na terra.

Tanta água
que exsudo e transudo,
como o vapor que sai da fonte e se abeira da areia.

Uma areia que não crê no mar!...

Então,
me abeiro da praia
e o cheiro do limo que me une no pé-de-vento do apego
da maresia.
Usufrui de mim e me chama.

Me subtrai à terra
me inunda e me ceifa.

Um grito selvagem ecoa no universo!...

Morreu Deus, o montão e a pátria.
Fechem o capitulo da evolução.
Já não há dentes para o pão.
Cravem a faca na terra.

Fernando Oliveira

Embaio

O sermão da véspera exonerou a vaca
do seu apregoo matinal.

A aldeia nada estranhou.

Foi o gato que pendurado no rabo do boi
amanheceu o povo;
e temperou a quimera da ordenha.

As selhas desordenaram-se no barulho do atropelo
e desmaiaram na palha velha.

O boi que dorme ainda...
não sabe que o calor da enxerga
se exilou há muito
para a floresta dos deuses do horrendo.

- Só tem patas de labor e sono,
o pobre não sabe do engano da aurora. -

Ouvem-se vozes na clareira
que corroem e arrematam
a causa do bicho sagrado!

... torrem-na na fogueira
esquartejem-na em bocados
facultem-nos uma parte do pecado...

De preto e branco e até amarela,
a vaca ficou castanha, assada.

Na praça da aldeia alguém gritou...
Parem. Parem. Parem por amor do boi...

Queimaram a vaca errada!...

Fernando Oliveira

Trama da fermentação

É génio, quem afirma que o negativo é opaco
O muro inclinado resulta da dívida do espirito
Há na praça da grei, um terço sem voz e um casaco
Que abriga o positivo, tentando abafar o grito.

Das normas, o indefinido abre-se e fecha-se
Na compreensão do avio, reforma-se
Achando-se na cara do aulista, de vigilância, cego.

É doido, quem afirma que o absoluto engravida
A pele do universo é extensiva, o pólen assexuado
Como diz a infelicidade tosca do rei da cidadela.

Delira, quem afirma que a esperança veste de afã
Na mão, os dedos apenas acariciam a sorte
Há na corte, dois anjos niilistas que discutem a morte
Do homem sem casaco e da barriga pagã.

Fernando Oliveira

Alvitre

Se desacreditar-mos a individualidade que leva a pedra da fundação...
obsta-mos a lavra da telha, do grão.
Seremos obrigados a fossar a planta...
até à raiz da regressão.

Fernando Oliveira

Dizem que é a terceira via.

Comprimido entre o dia e a noite.
Não tenho saída
não existe terceira via.

No dia, existo como a luz.
Um mapa moderno de átomos cegos.
Uma ilustração esclerótica
regida pelo monopólio da invenção.

Na noite, perco-me na leitura da escuridão.
Apagam-se-me as partículas colhidas durante o dia.
Trafego no tédio do sono
construindo sinopses de itinerários.

Vias fantasmagóricas.

Dizem... o sonho!
Mas o sonho pertence ao dia e à noite
não tem terceira via.

Meu rumo está traçado
e não conheço a rota.
Quando o dia envelhece
logo vem a noite.
Entre os dois apenas um ínfimo buraco.
A morte.

Dizem que é a terceira via.

Fernando Oliveira

Nota

Se me enforcares!
Utiliza uma corda com aguilhões.

Que o meu pescoço se distraia com a aguda dor
a minha língua deslembre o teu odor
e o meu nariz arrume a ofensa
com um trejeito de desdém.

Unguenta os meus pés com mel.
Que te arredará
a léguas do eu, cardápio.

Apenas beijarão os meus pés.

A gentalha insectívora
que em vida me respeitou.

Fernando Oliveira