Homenagem a Clarice Lispector

“Nada me acha.. na Ucrânia.. berço de judia
tenho a minha ossada no meu amante.. Brasil
cinquenta e sete anos.. no Caju.. desmedra
uma vida de urbes e.. de letras - que irradia
é o meu legado.. atadas em laços.. mil
- ao belo país.. onde a minha fadiga medra”

Quem sou eu.. para me abarcar.. a sanha bisonha…
se sou tão.. Clara.. que me Inspecta uma nuvem alva
ice.. brado a quem não deva.. a inépcia ronha
lar.. abalado.. neste momento de transe.. ressalva


12 quadras para Clarice Lispector

Esta é a minha prece de possesso

Uma súplica que quase arremesso
de encontro ao desbotado céu
justiceira.. coberta por um véu
a boca quebrada no urro espesso

Deus ouve, mas eu me ouvirei?

É na curva da dúvida.. que eu sei
existir.. como se não funcionasse
e na minha ira breve.. abarcasse
a inclemência.. que não é minha lei

Não posso destruir ninguém ou nada

Senão a mentira.. senão a mentira
contra esta… não posso ficar gaga
d’aí a minha ira.. d’aí a minha ira
no ralho óbice.. no âmago da chaga

Então eu quero destruir a mim

Insano processo… violento castigo
que me abala o rosto querubim
na brusca faceta.. sou meu inimigo
rói-me a doçura.. sinto-me ruim

Eu, que sou a fonte dessa paixão

A ti nada peço.. a mim nada perdoo
esgano no esmo.. a desvairada razão
sento-me numa pedra.. temendo o soo
do irado rogo.. deste pobre coração

Não quero pedir a Deus que me aplaque

Renuncio feio.. dos homens me afastei
sem eles.. não há Deus… que quero então…
se me despojo da sede.. abjuro a grei…
e peno-me numa parábola sem solução

Como seria a ira divina?

Se a não penetro.. é por enfermidade
ou se a retenho fechada na mão.. a cego
se a liberto.. dela afasto a caridade
se a afago.. logo chega o arrenego

Se esta cólera só destruísse a mim

E não atingisse os egos adjacentes
internava a parcela da minha sedição
no cofre dos meus subconscientes
e distribuía cabazes de compaixão

Mas eu sei o que foram as minhas dores

Nelas me reinvento.. douta promiscuidade
vi o flagelo d’alguém.. furtei a quem.. as cores…
e as chagas também.. curei qualquer maldade
mas o que eu pedia.. eram infernos de amores

O mundo só se dá para os simples

E eu compliquei os dados.. sofistiquei-me
vesti blusas de miséria e.. saias de luxúria
calcei sapatos de palácios.. e aleijei-me
nos meus pés límpidos.. com dedos espúria

Os pecados mortais em mim pediam o direito de viver

No medo dos outros.. nos burburinhos da cidade
nos rebentos da ira.. crescem festões de flores.. que oferto
a mim… só me infirmo.. aos outros.. que são divindade
é neste gesto que me acalma.. que vejo algum acerto

Cobre minha fúria com o Teu amor

Agora.. que a ira morre.. do teu espelho sou filha
sobra-me a piedade.. que te ofereço em encómio
os meus olhos não mais recuam.. para a insana trilha
porque me deste asas.. para fugir do demónio…

Fernando Oliveira

Esta homenagem inscreve-se no quadro da III edição do evento literário FLIP
Foi escrita em Paris aos 21 de Junho de 2005: as linhas em vermelho, são parágrafos ou frases extraídas dum texto da autora (Uma Ira) in "Para não esquecer" - 5ª ed. - Siciliano - São Paulo, 1992 (Crónicas) a escolha dos parágrafos, corresponde à sensibilidade do autor.

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